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Lei do Superendividamento: quando as dívidas crescem mais rápido que a paciência do consumidor

Tudo começou com a Dona Marlene, uma professora aposentada que sempre se orgulhou de ser “boa de conta”. Ela tinha um caderno cheio de anotações, tudo escrito com caneta colorida: mercado, luz, remédio, presente do neto, e assim ia. O problema é que, um dia, ela precisou consertar o telhado. “Coisa simples”, segundo o pedreiro. Pegou um consignado. Depois veio o armário da cozinha, que “não dava mais para adiar”. Outro consignado. Em seguida, um cartão consignado, porque o banco disse que era “prático”. Quando percebeu, o salário dela caía na conta e evaporava no minuto seguinte, igual água em asfalto quente.

Dona Marlene achou que era culpa dela. “Erro meu”, pensou. Até que um vizinho comentou que existia a tal lei do superendividamento, criada justamente para proteger gente honesta que só caiu em armadilha de crédito. Foi aí que ela descobriu que a história dela não era exceção, era mais comum do que fila de lotérica na véspera de feriado. E se tem uma coisa que essa história ensina é: quando o sistema é mais rápido para emprestar do que para analisar, não é o consumidor que está falhando.

Afinal, o que é a tal lei do superendividamento?

A lei do superendividamento é uma proteção criada para quem perdeu o controle da situação financeira e não consegue mais pagar todas as dívidas sem sacrificar o básico da vida tipo comer, morar e continuar respirando sem desespero.

A ideia é reorganizar todas as dívidas do consumidor de uma vez só, com regras mais humanas, para que a pessoa consiga pagar sem virar mártir financeiro. A lei limita quanto o consumidor pode comprometer, garante que pelo menos R$600,00 fique livre para viver e obriga bancos a renegociar de forma civilizada. Parece óbvio, mas até pouco tempo atrás, “civilizado” não era exatamente o padrão das cobranças.

Ela é o equivalente jurídico daquele amigo sensato que chega, pega suas contas da sua mão e diz: “Senta aqui, vamos resolver isso antes que vire matéria de jornal”.

Por que servidores públicos estão recorrendo tanto à lei?

É quase poético, o grupo que deveria ter mais estabilidade financeira, justamente por receber em dia, virou o público mais fragilizado pelo consignado. Segundo o Ibedec, 70% dos servidores ativos do país enfrentam algum nível de endividamento. Como isso é possível? Simples: excesso de crédito, pouca análise e nenhuma responsabilidade das instituições financeiras.

O consignado foi vendido como a “fórmula perfeita”: juros menores, pagamento automático e nada de inadimplência. Só esqueceram de avisar que, se vários bancos emprestam ao mesmo tempo sem se comunicar, o salário vai sendo fatiado até sobrar quase nada. Servidor ganha, o sistema tira antes dele ver, e o que sobra é… desespero.

Em muitos casos, somando consignado, cartão consignado, refinanciamento e “portabilidade milagrosa”, o servidor já está com 50%, 60% ou até 80% da renda comprometida antes do dia 10 do mês. E é nessa hora que a lei do superendividamento aparece como a única saída para impedir que o salário vire nota de rodapé do extrato.

Como funciona a lei do superendividamento na vida real?

Na prática, o consumidor apresenta um plano de pagamento para reorganizar todas as dívidas, e o juiz entra como o adulto responsável na sala. Os bancos são chamados para renegociar e, dessa vez, não podem simplesmente dizer “não me interessa”. A renegociação vira coletiva, com prazo maior, parcelas menores e limite sobre quanto pode ser descontado.

A lei proíbe que os bancos ultrapassem o teto de comprometimento definido para preservar o mínimo existencial. A ordem é clara: primeiro a vida, depois a dívida. Até porque ninguém paga a dívida de fome.

Outro ponto essencial: a lei também combate assédio financeiro. Ou seja, aquele festival de ligações, mensagens e ofertas “imperdíveis” que só pioram a situação passam a ser consideradas práticas abusivas. Em outras palavras, parem de empurrar crédito para quem já está afundado.

É só entrar com a lei que tudo se resolve?

Não exatamente. A lei não é varinha mágica, é solução estruturada. Ela traz ordem ao caos, mas exige que o consumidor apresente tudo de forma transparente: renda, despesas e todas as dívidas. O juiz avalia, os bancos analisam e o plano é ajustado até caber dentro da realidade financeira da pessoa.

O objetivo não é livrar o consumidor de pagar, e sim permitir que ele pague sem perder dignidade. É quase uma reeducação financeira obrigatória, só que com papel timbrado e assinatura de juiz.

E sim, funciona. Procons relatam aumento enorme de acordos bem-sucedidos, especialmente para servidores públicos. Porque, convenhamos, quando o sistema sai da mão dos bancos e vai para a mão do Judiciário, a conversa muda de tom rapidinho.

Quem pode usar a lei? Só servidor endividado?

Não. A lei vale para qualquer pessoa física em situação de superendividamento. Mas os servidores são maioria no fluxo porque o consignado gera um tipo de problema muito específico: o salário vai direto para o banco antes de chegar ao consumidor, o que deixa pouca margem para sobrevivência.

Entram na renegociação todas as dívidas “normais”, como:

  • Empréstimos
  • Consignado
  • Cartão de crédito
  • Cheque especial
  • Dívidas de varejo

Ficam de fora apenas:

  • Pensão alimentícia
  • Dívidas fiscais
  • Financiamento imobiliário
  • Valores de luxo adquiridos com risco consciente

Ou seja, a lei é para quem foi atropelado por juros, não para quem comprou uma lancha planejando pagar em 40 vezes sem saber nadar.

Como saber se você está superendividado? (Alerta: você pode se identificar)

Se você vive em eterno “refinanciamento do refinanciamento”, talvez a situação já esteja além do razoável. Sinais comuns:

  • O salário dura menos do que a bateria do celular
  • Todo mês você jura que vai melhorar, mas só piora
  • Dívida vira assunto proibido na família
  • Um empréstimo paga outro, que paga outro, que paga outro
  • Você já não sabe mais quanto deve, só que deve muito

Se dois desses sintomas batem forte, procure ajuda. Se todos baterem, a lei do superendividamento está te chamando pelo nome. É uma combinação de juros altos, crédito fácil, falta de orientação e, muitas vezes, pura negligência das instituições financeiras.

O mínimo existencial: o dinheiro que precisa sobrar para você continuar vivo

A parte mais humana da lei é a proteção ao mínimo existencial. Em bom português, o valor do salário que garante que você coma, pague aluguel, tome banho quente, compre remédio e consiga viver sem virar estatística de sofrimento.

Esse mínimo era estipulado em R$600,00. Mas apesar do valor fixado pelo decreto, já houve questionamento judicial e decisões de juízes que fixaram esse mínimo existencial em montante bastante superior. Ou seja, é daí pra mais. Se o acordo proposto pelos bancos não respeitar esse limite, o juiz pode derrubar e mandar refazer. A lei é clara: a dívida não vem antes da sobrevivência.

Essa regra protege especialmente quem tem consignado, porque o desconto automático é implacável. É o tipo de coisa que só a lei consegue corrigir, porque nenhum banco vai acordar um dia e dizer: “Talvez tenhamos descontado demais, né? Vamos melhorar isso.”

Por que os bancos emprestam tanto se sabem que a pessoa não pode pagar?

Os bancos continuam emprestando mesmo quando sabem que a pessoa não pode pagar porque, no fim das contas, isso ainda é vantajoso para eles. Pode parecer absurdo, mas a matemática dos bancos funciona diferente da nossa. Eles olham a carteira como um todo. Mesmo que uma parte dos clientes não pague, os spreads são tão altos que o lucro dos que pagam compensa as perdas dos inadimplentes.

E é por isso que o problema não está só no consignado. O consignado tem limite de desconto e é mais controlado, com teto de 35%, então ele não é o grande vilão isolado do superendividamento. O que destrói muita gente é a soma dos empréstimos, vindos de vários lugares ao mesmo tempo, muitas vezes liberados sem uma análise real do quanto aquela pessoa já está comprometida.

Mesmo com o SCR, que permite ao banco ver dívidas anteriores, na prática várias instituições preferem continuar emprestando. Faz parte do jogo. Quando a carteira inteira é lucrativa, a inadimplência vira apenas um número absorvível. A lei tenta colocar limites, mas a fiscalização é fraca e o incentivo para continuar emprestando é forte. No final, quem leva o risco inteiro nas costas é sempre o consumidor.

Dá para sair do superendividamento sozinho?

Às vezes dá, mas não é comum. Quem chega nesse ponto normalmente já tentou negociar com banco, já fez acordo ruim, já tentou organizar planilha e já aceitou que não está dando conta. Entrar com o processo da lei do superendividamento é admitir que você precisa de um árbitro, e isso não é fraqueza, é estratégia.

A vantagem da lei é que ela tira o consumidor da posição de implorar para pagar menos e coloca bancos, Procon, Ministério Público e Judiciário juntos na mesa de negociação. É um “vamos resolver isso direito”, e não “veja bem, é o que posso fazer por você hoje”.

Conclusão: a lei salva, mas quem muda a vida é você

A lei do superendividamento é um respiro num país onde crédito é oferecido com mais entusiasmo do que orientação. Ela ajuda, protege, organiza e devolve dignidade para quem já estava com o salário comprometido antes mesmo de receber.

Mas ela não muda hábitos, não cria reserva e não impede que o problema volte se tudo continuar igual. Ela conserta o estrago, mas cabe a você impedir que aconteça de novo. Pensar antes de pegar crédito, comparar, ler contrato e respeitar limites virou autopreservação.

Se existe uma lição final neste tema, é esta: a dívida não nasce grande. Ela começa pequena, discreta e até simpática. Mas, quando você menos percebe, vira uma bola de neve e, sem a lei, ela só para de crescer quando passa por cima de você.

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